não chegues a mim com o riso largo demais, que eu abomino o sentimento de inveja que toma conta de minha corrupta alma quando, ainda que não queiras, te mostras tão soberbo. como consegues ainda rir diante de tamanha desgraça? desculpem-me os otimistas, os positivistas, os good vibes, mas rir, agora, só se for de nervoso. e desculpa? ah, desculpa é uma ova, vai! que a minha paciência já acabou tem tempo e, se eu posso, eu vou mostrar a minha face mais bronca e malcriada por escrito, porque pessoalmente... e ninguém hoje está pessoalmente pra ninguém, ou não deveria estar, todo mundo é interpretação e polidez, a não ser, é claro, o irmão que tem que se humilhar por um prato de arroz para se manter de pé e, então, continuar se humilhando consecutivas e exaustivas vezes para então caminhar. o ministério da falsidade ideológica está em ruínas com a gente tendo que conviver vinte e quatro horas por dia consigo mesmo tout le temps! olhar pela janela essa vala que só cresce em múltiplos de sete palmos de fundura e de largura e sentir que a hora vem chegando, ou nem sentir... já que a derrota está cá posta desde que o trem surgiu há milhas e milhas de oceânico vapor! vomitaria cada uma dessas palavras sob a louça de porcelana da corte imperial nauseabunda inglesa. ah, se não fossem essas amarras que prendem-me à essa pátria tão dependente de mim! se não fosse esse ímpeto de ruir com todas essas estruturas monumentais pagas à sangue, de arrancar a cabeça do coronel e de reescrever a história e rebatizar essas avenidas com nomes de heróis da terra! eu já teria posto a minha melhor roupa e aprendido a mais clássica variedade do british english para atravessar esse ocenao a nado e ser surrupiado na terra do surrupiador. não, não chegues a mim com esse riso, que o momento do meu riso ainda não chegou
Conto sensual
Desde que amanheceu, ainda que sem sol, percorria os olhares para as horas de ontem: lembrar de cada ação era como se eu revivesse o toque; as digitas dos dedos despelando, num tempo frio e seco, na pele macia com pelos ralos, a situação se dava pela calmaria, a rendição pelo cansaço, de forma que ocupavam-se inevitavelmente pelo comprometimento: estar ali um pelo outro era, também, estar por si, em realizar-se. Nos dedos, a firmeza do ato. Tentava relembrar outros cheiros, outros sabores, mas a memória lhe lembrava de que aquilo nunca houve antes e era tudo, tão somente, o que queria em alguém: o gosto que dura. Salivava pouco, não que não existisse motivo, mas destilava, lentamente, como predador que saboreia o imaginário até a razão desaparecer e esvaziar quaisquer espaços. Bem dentro dos olhos, conseguia sentir os pelos que se eriçavam no meio das costas: era a amostragem do envenenamento, arrepio entre as duas asas. Com as mãos muito bem posicionadas a língua
Comentários
Postar um comentário