Conto sensual

Desde que amanheceu, ainda que sem sol, percorria os olhares para as horas de ontem:
lembrar de cada ação era como se eu revivesse o toque;
as digitas dos dedos despelando, num tempo frio e seco,
na pele macia com pelos ralos,

a situação se dava pela calmaria, a rendição pelo cansaço,
de forma que ocupavam-se inevitavelmente pelo comprometimento:
estar ali um pelo outro era, também, estar por si, em realizar-se.
Nos dedos, a firmeza do ato.

Tentava relembrar outros cheiros, outros sabores, mas a memória
lhe lembrava de que aquilo nunca houve antes
e era tudo, tão somente, o que queria em alguém:
o gosto que dura.

Salivava pouco, não que não existisse motivo,
mas destilava, lentamente, como predador que saboreia o imaginário
até a razão desaparecer e esvaziar quaisquer espaços. Bem dentro dos olhos,
conseguia sentir os pelos que se eriçavam no meio das costas:

era a amostragem do envenenamento, arrepio entre as duas asas.
Com as mãos muito bem posicionadas
a língua caminhava adestrada.

Amanheceu, mesmo sem sol, lembrava dos pensamentos
desde como gostaria que as mãos estivessem macias
para que o tato permanecesse na memória, infindável
e sobre como gostaria que o paladar fosse eterno.

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