A vida inteira pela frente, o tiro veio por trás

Acordei bem cedo, como de costume, para os afazeres: escovar os dentes, lavar a louça, organizar a agenda de trabalho do dia, alimentar o peixe e, enfim, fumar meu cigarro com café.

Não me considerava fumante há dois anos, quando eu fumava um e outro cigarro picado, da carteira de amigos que bebiam comigo. Eu só fumava quando bebia, que era na sexta ou sábado. Ou sexta e sábado, a depender da companhia. Chamamos aqui de picado quando pegamos um único cigarro da carteira/ maço. Quando me assumi pra mim como fumante, percebi que passei a comer menos. Emagreci, apesar de sempre ter me mantido no peso recomendado e, confesso, troquei uma ou duas refeições por tabaco bem bolado e café sem açúcar. Então, café, quando pela manhã, é sempre acompanhado de pelo menos um cigarro. No jantar também.

Saio sempre por volta das 07h e só retorno às 20h, o que só me possibilita preparar qualquer coisa bem não nutritiva e comer, e assistir algum programa de tevê bem degenerativo.

Noutra noite, depois de quase ter atropelado um cachorro muito magro, que talvez carecesse ter morrido, talvez se deus tivesse tido dele misericórdia e de mim ódio, porque eu certamente teria mágoa em ter atropelado um bicho tão inofensivo, ele decerto teria parado debaixo da minha roda dianteira direita. Dianteira e não de antera, uma vez que antera mesmo, só quando faço dela a boca. Acho que li isso num livro um dia, mas não me lembro porque deveria estar nalgum estado de cansaço muito grave. Tenho isso antes das oito da manhã e depois da meia-noite, não costumo me lembrar do que aconteceu e, daí, também não tenho capacidade de prever, chutar, opinar ou dar palpites a cerca de quaisquer que sejam os assuntos.

O tal do cachorro não morreu e nem eu, depois de, também quase, estourar um dos pneus depois da brusca freada. Mas, claro, teria de logo trocá-lo, era certo, porque, ao próximo cachorro esquelético, eu não sobreviveria.

Decidi, naquela noite, assistir a um filme besta qualquer para que eu dormisse e me livrasse das intemperes do dia. Se eu acreditasse em deus, possivelmente eu pediria para que ele abençoasse minha noite de sono e eu, finalmente, conseguiria descansar. Se eu acreditasse, talvez pensasse que no dia seguinte eu poderia enfim ter chegado ao céu ou ao inferno para o julgo final, por todo meu erro andante nessa terra de ninguém. Dormi na metade do longa-metragem e a única coisa de que me lembrava era que eu quis ter desligado a televisão e não o fiz.

Amanheci com atraso de uma hora e pensei em pedir ajuda a alguém. Pedir pra que qualquer pessoa ligasse no meu emprego e inventasse qualquer estorinha fuleira que convencesse meu patrão a não me notificar com uma advertência ou a cortar algumas horas do salário tão sofrido. Olhei nos cantos de casa. Nos bolsos e nas agendas: não havia quem pudesse fazer isso nem muito menos. Não havia ninguém e peixe nem barulho faz. Invés disso, escrevi:

- Cíntia, 24 anos. A vida inteira pela frente. O tiro veio por trás. – E enviei. Acreditam, sempre, no trágico que choca.

(Zazá - dezembro de 2017)

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