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Era tempo de infância, ou a fase do porquê”, como se referiAna Cecília às suas visitas quase nunca anunciadas, ou agentes de saúde, quando estas lhe perguntavam sobre seus filhos Hernandes Gustavo, João Paulo e Ana Beatrizem ordem cronológica de nascimento. Isso porque Ana já estava surtando com as mirabulosas e frequentes questões dos filhos mais novos, principalmente as articuladas por João Paulo, que contava sete anos e ainda insistia no hábito de querer descobrir o mundo. O menino queria saber de tudo, inclusive de si próprio, a partir do passado dos mais velhos que, desafortunados, preferiam mantê-lo intocável e oculto. Um dia, Vilmar, esposo de Ana Cecília e pai das crianças, já agastado com João Paulo, que empreendia descobrir por que 7 é “sete” e não “seis”, lhe repreendera: “Paulinho é chato demais! Tem coisa que é porque é”. João Paulo, que só não foi o mais chorão dentre os filhos do casal porque o último estava por completar sete meses de fecundação, diante da absoluta do pai, optou por engolir o choro, e, mentalmente, conclui que aquele homem não o amava 

Nessa época, o pai trabalhava viajando. Passava longos períodos longe de casa fazendo sabe-se lá o que nas terras de parentes no interior do Paráaparecia esporadicamente em casaDa última vez, chegou com a notícia de que, assim que Marlon Vilmar nascesse, a família se mudaria pra chácara herdada na morte de José Fortino, seu pai, a qual o contrato de arrendamento estava por vencer. João Paulo, que estava emburrado com o pai, não questionou sua decisão, mas, no sopitar do dia, chorou com a cara enfiada no travesseiro até cair no sono.  

Quando a mudança pra roça ainda era recente, o menino carregava um medo peculiar pela noite, que trazia consigo um coral de curicacas, siriemas e corujas. Ouvira numa ocasião seu avô materno contar que o canto da coruja era presságio de morte, enquanto o pai, que trocou as viagens para cuidar exclusivamente da chácara, inventara de revelar que o pasto de frente da casa que moravam escondia o cemitério das famílias que moraram ali antigamente, e o único túmulo passível de ser localizado estava marcado por um pau de árvore queimado e solitário à margem da cerca que limitava o pasto-cemitério. Num ou noutro final de tarde era comum avistar urubus se espreguiçando naquele pau de árvore. Mas de todos os temores, o que mais fazia o menino tremer a espinha era se imaginar sendo esquecido pela mãeSempre que iam à missa, à casa de algum conhecido ou parente, conferia, de quando em vez, independente do que estivesse fazendo, o paradeiro da mãerelembrando-a do trato de chamá-lo no horário de partida. Era o piolho de Ana, e passar uma só noite longe dela era motivo suficiente para fazê-lo chorar pensando no pior que poderia lhe acontecer. Com o pai era diferente. Vilmar era para Hernandes o que Ana Cecília era para João, e as próprias visitas e familiares defendiam esta tese. 

À medida que avançavam os anos, o desempenho de Paulinho na escola não se comparava ao de Hernandes, o que tanto era motivo de orgulho quanto de fuxico na família. Diziam que João Paulo estudaria e se tornaria um doutor, enquanto Hernandes tomaria o lugar do pai nos negócios da chácara e, como ele, "morreria no cabo da enxada". Se respaldando nas notas de seu boletimPaulinho perdia gradativamente o medo de Vilmar e respondia às contradições do pai de modo soberbo, embora não desobedecesse às suas ordens por medo do que isso pudesse resultar. Os dois irmãos mais velhos, por mais diferentes que iam se tornando um do outro, faziam juntos a maioria das atividades determinadas pelo pai  roçavam pastos, ajudavam com a plantação da roça de milho, de mandioca e banana, e às vezes revezavam na busca da silagem pro gado. 

Paulinho odiava cada vez mais a vida na roça. Se sentia como que um papagaio de asas cortadas. Odiava ter de acordar mais cedo que todo mundo pra ir à escola. Odiava o barro impregnado na sola dos sapatos que fazia sujar o chão debaixo de sua carteira e o cheiro de silo que impregnava na pele como um perfume indesejado. Odiava, acima de tudo, que não se sentia como o resto dos adolescentes quando iniciara o ginásio. Estes começavam a beijar na boca, na hora do intervalo, enquanto ele estava mais preocupado em pegar a fila da cantina pra comprar seu lanche e, com o troco, balas pro irmão mais novo. Era isso todo dia. Adorava andar a cavalo, ou melhor, de égua – a Granfina –, quando o pai pedia pra apartar o gado. Imaginava que ela fosse uma égua-alada e ele um super herói. Daí em diante, o pasto se tornava um campo de treinamento, o ferrão um tridente e as vacas inimigas a serem vencidas. 

 Chegou a época em que perdera por completo o medo da morte e da noite. Inculcara um outro saber do avô, parecido com “nois que é vivo tem que temer o que é vivo, os mortos só querem descansar”. Nos finais de semana, quando não tinha aula, pegava a velha lanterninha de alumínio e ia no breu buscar o gado pro pai tirar leite. Hernandes, que até pouco tempo dispendia de tempo para brincar com os irmãos, largou a brincadeira e se tornou um gente grande. Seu caderno não deixava dúvidas: estava caidinho por uma tal Jéssica. Escrevia em páginas e mais páginas o nome da menina. Paulinho, quando descobriu isso, logo contou pros seus dois melhores amigos da escola e nenhum deles compartilhou de sua surpresa. Igor, um dos brincalhões da turma, afeito em desenhar genitálias com corretivo nas carteiras e ônibus num programa de computador, lhe disse que estava ficando com uma tal Ana Clara. Por outro lado, Júnior, um CDF que falava cuspindo e que sempre cheirava a suor, porque gastava o intervalo inteiro jogando futebol, disse: 

– Já tá batendo uma, hein, Igor? – fazendo um gesto de vaivém com a mão semi-cerrada.

Não era a primeira vez que João Paulo escutava aquela expressão "bater uma". Certa vez, um tio, irmão de sua avó, brincalhão que era, lhe desafiou. "– Dizem que menino que já bate uma tem cabelo na palma da mão". João olhou pra mão, não viu cabelo algum e o tio caiu na risada. Naquele mesmo dia, Júnior tirou da bolsa um envelope vermelho com um CD e entregou a João. "– Assista quando estiver sozinho em casa, beleza? Meu irmão baixou e eu fiz uma cópia pra você". Não entendeu muito bem o que aquele CD poderia ter a ver com o relacionamento do irmão, tão pouco com "bater uma". 

Esperou a hora da ordenha da tarde, quando a família se reunia toda no curral – os menores se arriscavam nas vigas de mourão, Hernandes ajudava Vilmar com o leite, Ana impingia sermões sobre a falta de maturidade financeira do marido –, para matar a curiosidade sobre o conteúdo do presente de Júnior. A primeira personagem do vídeo era uma mulher morena, cabelos longos, peitos e bunda maiores que o normal, visto que a lingérie que trajava perdia o propósito. A mulher falava ao telefone e mostrava uma voz dengosa, por pretensão. A tela se divide e surge, então, o interlocutor, um homem musculoso, vestido só da cintura pra baixo com calças e botas de mecânico – a julgar pelas peças encardidas – e, na cabeça, um quepe que escondia os cabelos grisalho-prematuros. O foco da câmera era as mãos do homem esfregando o volume duro debaixo das calças. João estava na mesma situação. A cueca molhada de líquido pré-gozo fez ter vontade de prová-lo. Não parecia um errado, tendo em vista que a mulher do vídeo, obedecendo à ordem do mecânico,  engolia por inteiro seu cacete.  Terminou o vídeo com o chamado do pai:

– Paulinho, vai buscar o silo antes que escureça!

O menino então arriou a carroça nos lombos de Granfina e saiu pra buscar o silo, que ficava próximo à roça de banana, no pé da serra, no rumo em que o sol se punha. Quando ia descer pra abrir o colchete, olhou pros lados – não viu ninguém –, jogou os garfos de lado, limpou o assoalho da carroça com o arrastar dos chinelos, deitou no chão duro e teve seu primeiro orgasmo. Os pássaros, em bando no céu, cantavam e iam de encontro ao criador. João sentia-se inebriado e, ao mesmo tempo era tomado por um sentimento de culpa. Havia rememorado o vídeo mas, ao invés dos atores, viu Júnior atravessar seus pensamentos. Não questionou. Se lembrou de antigamente, quando da assertiva do pai, e disse para si mesmo: – Tem coisa que é porque é.

zé.


  

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