Os olhos de Daniel

Naquele domingo, cansado de ter nada que fazer, me dou o direito de ficar na cama até às onze. Acendo um cigarro, caminho pelo apartamento colhendo roupas para bater, tomo um copo do café mais frio que morno preparado na tarde passada, lavo a louça e sento a bunda no sofá, de onde só saio às 14h.
Depois de ter comprado e comido o almoço, volto pra cama e durmo por cerca de uma hora e meia. Acordo de pau petrificado e cueca molhada. Desde o dia anterior sentia uma volúpia que, indubitavelmente, chegara ao estágio da transpiração. Ainda lembro do sonho responsável por aquilo que beirou se tornar uma polução diurna. Éramos três, aninhados no pasto da frente da casa que me viu crescer, na fazenda. Eu e um deles nos atracávamos na grama, num sexo espiado por estrelas já mortas naquele céu enorme de interior. Tão enorme quanto as metafantasias que despontam do inconsciente humano. Rodávamos de desejo naquele chão cru, numa depravação a qual nunca havia me permitido antes. O outro, que podia jurar estar dormindo quando a foda começou, quando me lembrei dele e olhei pro lado, vi que batia uma punheta e gemia enquanto observava aquela pederastia. Chamei por ele. – Vem! E, sem pestanejar, terminou de se despir, se arrastou de onde estava deitado e atracou-se sobre nossas carnes, lambuzando-se como selvagem.
Acordo no ápice do devaneio com os berros da vizinha debaixo, aquela que não consegue falar com os filhos em tom amistoso. Verifico se está tudo limpo por debaixo da bermuda e confirmo que sim. A volúpia continua espreitando-se por todo meu sistema nervoso central, digestivo, respiratório e mental, penso que se continuasse naquela abstinência começaria a bater repetidas vezes com a cabeça na parede. Abro o Grindr na intenção de encontrar alguém que pudesse ajudar a reprimir aquele cio e, não muito tempo depois, sou chamado pelo usuário Lucas, 36. Muito cordial, no correr da conversa trocamos alguns nudes e marcamos de nos encontrar em sua casa.
No banho, teorizo como será Lucas pessoalmente, em que acredita e desacredita, o que faz da e com a vida, crio suposições sobre sua performance na cama e seu tom de voz, se me cumprimentará com um aperto de mãos, com um abraço ou diretamente com um beijo, se é que Lucas beija os rapazes com quem se relaciona. Em quem Lucas terá votado nas últimas eleições? E se ele for daqueles que depois da foda caem de lado, como coelhos, vestem a cueca e, nas entrelinhas, dizem que você já pode ir embora? As mesmas questões para encontros cada vez menos fortuitos. Visto as primeiras peças que encontro no guarda-roupa, escovo os dentes, notifico a família de que estou indo me encontrar com uma amiga e saio de casa.
Chegando no apartamento de Lucas – aperto de mão –, sinto cheiro de hospital e tenho vontade de voltar para casa, mas não o faço. Conversamos algum tempo, descubro que na verdade seu nome é Daniel – num lapso, penso na futilidade que é se transvestir de outro nome –, trabalha como biólogo num hospital público, nascido no interior. Me conta uma história, a sua – que me remonta ao rútilo-nada de Hilda Hilst –, de quando perdeu seu companheiro num acidente de carro e, diante da morte, sozinho, não teve outra escolha além de se assumir gay pra família.
Depois dessa história, nada me chamou mais atenção naquele homem do que o seu olhar – rubro, cansado, perturbado e perpendicular ao meu quando me falava de sua vida. Sinto um incômodo tremendo com aqueles olhos distantes e, percebendo o desconforto, ele me convida pro seu quarto, coloca pra tocar música pop dos anos 80 a qual não consegui reconhecer e, da sala, onde está a TV, ao quarto, vem dançando uma dança desajustada, mas que intenta sensual. Entre os amassos, gradualmente despimos um ao outro e logo depois ele retribui o meu boquete automático, fazemos um 69 com ele em cima de mim, o que me faz engasgar mais de uma vez. Por sorte, tenho uma ejaculação precoce e saio com vida da situação. Ao sair do banho, encontro Daniel, que sequer havia gozado, já de cueca novamente, feito o qual eu interpretaria como “pronto, pode ir embora” caso ele não tivesse me convidado para deitar novamente a seu lado a fim de trocar carícias.
Comecei a sentir pena de Daniel no momento em que, abraçados em sua cama, ele soltou aquele “Eu gostei demais, sabia?”. Eu só conseguia pensar em como ele tinha chegado àquela conclusão, mas não queria transparecer isso, então sorri e disse “Eu também”. Ele parecia tão feliz com minha resposta, embora seus olhos dissessem o contrário, que continuou “Se hoje fosse sábado e não domingo, não te deixaria ir embora”. Não alcançando as palavras, dissimulei um riso e acenei. Conversamos algum tempo sobre os relacionamentos modernos e as fast fodas, apresentava meu ponto de vista – um discurso pronto, hipócrita e romântico de quem há muito o deixou de ser – e ele corroborava a partir de suas experiências. O Daniel era tão só, que descortinava a minha, a sua e a nossa solidão. Antes deixá-lo, me entregou um papel com seu número de celular e, não tendo ainda fechado a porta enquanto eu já ia pelo corredor, pra se certificar, soltou um “E se você não mandar a mensagem? Fica por isso mesmo?”, o qual, sem pensar, só consegui responder com “Se eu não mandar, a gente conversa no Grindr”.
zé.

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